“MINHA CASA É MAIOR DO QUE O MUNDO”
- capnaquarentena
- 14 de jul. de 2020
- 5 min de leitura
Diante dos desafios deste contexto de pandemia, nós, do segmento da Educação Infantil do CAp UFRJ, nos vimos diante de diversas questões: como nos manter em movimento, como escola, apesar do isolamento social? Como fazer a manutenção dos vínculos construídos com as crianças, uma vez que não as encontramos mais presencialmente? Como nos fazer presentes nas casas das famílias de maneira coerente com a nossa concepção de Educação Infantil?
Em um primeiro momento, as respostas-ação se deram a partir de uma série de postagens veiculadas no site “CAp na Quarentena”. Com o prolongamento desses dias de distanciamento, sentimos a necessidade de expandir nossas ações e, a partir do poema “O apanhador de desperdícios”, do poeta Manoel de Barros, buscamos novas possibilidades de nos fazer presentes. Assim, surgiu o projeto “ Minha casa é maior do que o mundo” que tem como objetivo promover a aproximação e o estreitamento dos laços afetivos entre crianças, famílias e escola, em tempos de pandemia.
O apanhador de desperdícios
Manoel de Barros
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água, pedra, sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
Imersos em uma pandemia, descobrimos nossas casas maiores do que o mundo, mesmo que em nosso contexto urbano, os quintais estejam em extinção. E quando falamos em casa, dizemos o espaço em que encontramos refúgio, o que pode ser entendido como a construção em que nos abrigamos e também os nossos corpos, que são casa para as nossas emoções e memórias e nos acompanham por toda a vida.
Como temos vivenciado o isolamento em nossas casas? Do que sentimos saudade? O que tem sido bom? O que fazemos para lidar com as dificuldades? Que recursos podemos utilizar para expandir nossas casas-mundo até que elas atinjam outras casas e assim nos mantermos conectados, ainda que distantes?
Essas são algumas perguntas que irão mobilizar nossas propostas daqui em diante. Desejamos que juntos possamos compartilhar, a partir das inquietações que as propostas trarão, nossas possíveis respostas, ou talvez, outras perguntas que surgirão em meio a esse movimento que compartilharemos neste espaço que, por hora, é o nosso lugar comum: o site CAp na Quarentena. Convidamos todos e todas a viver esses movimentos conosco, pois, assim como no mundo, em casa cabe tudo: alegrias, tristezas e o muito que habita o meio. Cabe também o CAp-UFRJ.
Nossa escola permanece em movimento e busca, neste momento, ampliar sua presença nessas casas por meio de propostas que dividiremos em quatro principais eixos temáticos:
1. “Aprendimentos” antirracistas:
Entendemos que nossa identidade é também nossa casa e nossas origens são elementos fundamentais na composição e desenvolvimento da infância nas relações com um mundo em descoberta. Como contribuir para reforçar os alicerces desta casa-eu por meio da reafirmação dessas origens?
Para responder a essa questão, inspiramo-nos na licença poética manoelina, e acreditando que “quem se aproxima das origens se renova”, reafirmamos nosso compromisso com a diversidade e diferença através do fortalecimento de ações educativas de combate ao racismo e à discriminação. Assim, serão compartilhadas práticas antirracistas a partir da ideia de “aprendimentos”, como nos ensina Manoel de Barros em um outro poema de mesmo nome, publicado em 2008.
Com os "aprendimentos" na infância, ressaltamos a importância dos contos orais e escritos, como, por exemplo, os africanos, afrobrasileiros e indígenas, como potentes narrativas, que tenham como função colaborar para a construção de um mundo que experiencie as relações étnico-raciais/culturais no seu sentido pleno.
2 - Relembrando experiências:
Em seu poema “Achadouros”, Manoel de Barros (2018) fala que “as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade". As memórias da primeira infância têm uma magnitude afetiva importante, pois trazem alento e contribuem para o fortalecimento de vínculos e afetos. Compartilharemos algumas mobilizações que nos tocaram a partir das experiências que nos atravessaram durante o período em que estivemos juntos na Sede Fundão e que servirão como pano de fundo para a elaboração das propostas deste eixo: quais experiências nos marcaram em nossa escola? Quais experiências gostaríamos de relembrar e reviver nesse novo espaço-tempo?
Com o intuito de fazer essas experiências pulsarem novamente em nossos corpos, em nossos sentimentos e em nossas memórias, que são "maiores que o mundo", é que as propostas trazidas aqui buscarão “separar a experiência da informação”, como propõe o filósofo Jorge Larrosa (2001), não por uma se sobrepor a outra, mas porque a experiência nos atravessa, nos compõe, faz parte da nossa intimidade.
Quando revivemos essas experiências, acessamos uma memória imaginária, livre da rigidez de fatos reais na linha do tempo. A lembrança ultrapassa esses limites, e avança para uma memória reinventada, a medida que aquele que recorda não é mais o mesmo que vivenciou as experiências, onde o vivido, o sonhado e o imaginado se fundem.
É na nossa casa, nesse lugar do íntimo, na casa-corpo, na casa-memória, na casa CAp na Quarentena, que encontraremos um lugar comum para compartilhar nossas lembranças e relembrar nossas experiências.
3 - Infâncias “invencionáticas”:
O autor Manoel de Barros encontra na criança e na linguagem infantil outras possibilidades de ver e escrever o mundo. Neste momento, em que precisamos nos reinventar, criar novas formas de existir, passar o tempo e ressignificar os espaços de nossas casas, nos inspiramos nesse mundo de possibilidades, que são as infâncias.
Infâncias “invencionáticas” é um movimento curioso, exploratório e lúdico, em direção a infâncias inventivas, que são potentes na ação de pensar, criar, viver, experimentar e ler o mundo. Infâncias de sentidos, de perguntas e de muitas brincadeiras e descobertas.
Assim, inspiradas (os) no poema de Manoel de Barros “O Apanhador de Desperdícios”, no qual o autor diz não ser da informática e sim da invencionática, indagamos: o que estamos (re) inventando em nossas casas?
4 - Movimentos poéticos:
Todo movimento requer um passo, uma mudança de lugar. Para se movimentar é necessário sair do lugar e caminhar em alguma direção. Mas, que lugar? Que direção? Qual o caminho? Como estamos ocupando nossos espaços? Que movimentos estamos experimentando nesses espaços?
A poesia, de certo modo, é uma forma de movimentar-se. De expelir – fazendo o movimento de dentro para fora e vice-versa.
Em tempos tão estranhos e inéditos, movimentar-se com poesia é olhar para o exterior “de nossas casas” sem esquecer o som que vem de dentro. E esse olhar inclui dores, incertezas, medo, alívio e esperança no meio do caos…
Caminhar em direção à arte, como movimento poético, nos possibilita encontros potentes: música, literatura, dança, artes plásticas, artes cênicas, artes populares, como num encontro entre a diversidade dos nossos sentimentos, buscando forças para vencer os dias ruins e compartilhando as pequenas alegrias.
É no movimento da poesia cotidiana que lutamos pela infância narrada pelo poeta Manoel de Barros; e é nesse mesmo movimento que a gente luta contra toda barbárie aos pequenos.
Mais do que qualquer definição pronta, movimento poético é uma forma de promover o diálogo e o encontro entre as idas e vindas, entre os fluxos e os contrafluxos, entre as dores e as delícias do viver. E, nesse movimento, vamos ao encontro do outro para matar a saudade e para compartilhar.
Muitos veem estes dias de confinamento como desperdiçados. Nós aqui buscamos apanhar estes desperdícios, aproveitando-nos da potência “invencionática” da infância, para que, com as propostas aqui compartilhadas, possamos compor nossos silêncios em palavras, gestos, sons, formas, cores, cheiros, sabores, interações e brincadeiras.

Referências:
BARROS, Manoel de. Aprendimentos. Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros/ iluminuras de Martha Barros. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008.
__________________. Achadouros. Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros/ iluminuras de Martha Barros. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008.
LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira. n. 19, Jan/Fev/Mar/Abr 2002. Disponível em: <http://educa.fcc.org.br/pdf/rbedu/n19/n19a03.pdf>. Acesso em: 09 jul 2020.
Obrigada Carlinhos!😘😘😘❤❤❤❤
Feliz Dia dos Professores!!!!
Recadinho do Carlos - Infantil 5
Quanta acolhida, delicadeza, beleza e alegria vocês conseguem fazer emergir em tempos tão tristes. Me acendeu a alma viajar por aqui por uns instantes, nas asas poéticas de Manoel de Barros. Esse site é uma importante referência de uma proposta sensível às demandas e desafios de nosso tempos. Parabéns demais!
Está muito lindo!
Convido toda comunidade capiana a visitar e interagir conosco!!!!
Orgulho de ter construído esse lindo projeto com essa Equipe tão sensível e capaz😍👏👏👏👏❤❤❤❤